Com texto de Guilherme Samora, estudioso do legado cultural de Rita Lee
Antes de mais nada, uma constatação: Coisas da Vida é uma das mais belas canções já compostas e gravadas no planeta. Letra e música de Rita Lee, ela faz parte de Entradas e Bandeiras de 1976, quinto álbum solo da roqueira-mor, relançado na cor verde em edição especial pela Universal Music.
Com uma melancolia quase alegre e uma esperança quase triste, Coisas da Vida tem uma melodia que passeia por lugares muito diferentes de tudo o que Rita já havia produzido antes. É experimental até na maneira como foi composta: a única que ela fez ao piano. E ao piano de sua mãe, Chesa. Tanto que, na gravação, o piano base é tocado por Rita.
Em uma entrevista da época, ela contou que fez a música em poucos minutos, logo depois de receber o resultado de um exame de sua mãe, que fora diagnosticada com câncer. “Depois que eu envelhecer/ Ninguém precisa mais me dizer/ Como é estranho/ Ser humano nessas horas de partida”, canta Rita sobre a impermanência da vida. “Eu não tenho hora pra morrer, por isso sonho”, diz, mais adiante. E Coisas da Vida se tornou uma das preferidas entre os fãs e uma das mais tocadas daquele ano.
Entradas e Bandeiras, o terceiro LP de Rita com o Tutti Frutti como banda de apoio, teve a tarefa difícil de suceder Fruto Proibido (1975), álbum que a havia projetado como a maior estrela do rock nacional. E o disco cumpriu seu papel: roqueiraço, underground e um clássico do rock BR. Entretanto, ele é carregado de lembranças pesadas para Rita. Logo no início da turnê, no icônico teatro Aquarius, no bairro do Bixiga, em São Paulo, ela foi presa em sua casa. Rita estava grávida de Beto Lee, seu primeiro filho com Roberto de Carvalho, que se tornaria seu maior parceiro musical a partir de 1979.
A prisão foi justamente para servir como “exemplo para a juventude”. Afinal de contas, em plena ditadura, uma mulher livre e dona seu nariz, cantando o que bem entendia, era um grande perigo para os militares. “Com a boca no mundo” é justamente sobre isso. “Quantas vezes eles vão me perguntar/ se não faço nada/ a não ser cantar”, entoa para, mais adiante, reafirmar: “agora não é tempo/ da gente se esconder/ tenho mais é que botar a boca no mundo”.
Mesmo que Coisas da Vida tenha sido o maior hit do álbum, Corista de Rock tocou bastante nas rádios e rendeu um clipe para o Fantástico, com Rita ostentando, linda, seu barrigão de gravidez, depois de ter sido julgada e deixar o cárcere. Ela ainda cumpriu um ano de prisão domiciliar.
Bruxa Amarela, um dos pontos altos do LP, numa interpretação irretocável de Rita, é um presente de Raul Seixas e Paulo Coelho para ela. Raul mandou a demo com o seguinte recado: “Rita, seu trabalho tá muito bonito e a gente resolveu fazer uma música para você gravar em seu próximo disco. Foi feita com muito carinho”.
A capa do LP, forte, é digna de nota: Rita, no Ibirapuera, com o papagaio de um amigo nos ombros e um colar emprestado da joalheria H. Stern. A joia chegou junto com um segurança da loja, que permaneceu no local durante toda a sessão e tratou de devolver o colar assim que tudo terminou.
Superstafa, sobre a correria de todos os dias, Posso Contar Comigo e Departamento de Criação são rocks 70’s dos mais pesados. No disco, o Tutti Frutti tinha a seguinte formação: Lee Marcucci, Luis Sérgio Carlini, Sergio Della Monica, Paulo Maurício, Rubens e Gilberto Nardo. Em Lady Babel, Rita-desacato faz um manifesto pela diferença: “A árvore que se curva/ contra o vento que é mais forte/ dura mais, muito mais/ Só as folhas que procuram pelo sol/ são chamadas normais/ Doce ilusão!”
O disco fecha com Troca-Toca, composição de Rita, que, num vocal delícia-displicente, avisa: “E quem me vê vai saber/ Que eu estou por aí/ Tocando pra você/ Se divertir com a minha cara”.
Entradas e Bandeiras já está disponível para pré-venda em edição de vinil azul na loja da Umusic Store pelo valor de R$ 169,90 (Taxas podem ser aplicáveis).